CARTA DE LONDRINA

“Nós, professores e professoras de Educação Física, pesquisadores e pesquisadoras de diferentes áreas temáticas da Educação, reunidos em Londrina entre os dias 27 a 29 de Julho de 2004, por ocasião do Congresso Norte Paranaense de Educação Física Escolar – CONPEF -, temos a manifestar o que se segue:

1. Consideramos que nossa época e conjuntura histórica precisa reestruturar um veemente apoio à Educação escolar pública, leiga, gratuita e universal. A educação brasileira passa por um privilegiado momento de refazer suas identidades e opções, necessitando de políticas educacionais que visem a emancipação, a promoção da cidadania e a produção efetiva do acesso pleno de todos os cidadãos ao sistema educacional escolar como forma de garantia de seus direitos e valores fundamentais. A educação e a escola no Brasil precisam refazer suas marcas históricas excludentes e constituir um novo “ethos” baseado nos princípios de universalização do acesso, construção de parâmetros de qualidade do custeio e permanência, promoção da gestão democrática da escola e garantia de ampla participação social.

2. Para nós a educação escolar e pública universal é um direito de todos e dever do estado. Não compartilhamos com as campanhas e iniciativas recentes que afirmam ser a educação uma questão de mercado e de oportunidades econômicas. Não compreendemos a educação como qualificação para a empregabilidade, tão a gosto dos discursos neoliberais atuais; defendemos que a educação é a transmissão social de saberes, conteúdos, habilidades e competências necessárias à convivência social emancipatória e produtiva e ao trabalho, condição básica para a produção dos consensos sociais estruturais.

3. Entendemos que a Educação Física faz parte do núcleo histórico da educação ocidental, desde seus primórdios institucionais, e o magistério escolar é uma das mais privilegiadas formas de exercer a cidadania e formação para a apropriação emancipatória do corpo, da identidade subjetiva e da qualificação para o ser e para o trabalhar, para o lazer e para a criatividade. A Educação Física que defendemos para a escola não é a modeladora de corpos para a operacionalidade do mercado nem a classificadora de talentos para o consumo mercantilista de marcas. Defendemos uma urgente revisão das orientações que pautam a concepção dominante de educação e Educação Física em nossa sociedade.

4. A pesquisa em Educação Física centrada na formação e na atuação docente sempre representou uma lacuna na formação básica e formação continuada dos profissionais de nossa área. Afirmamos a necessidade de oportunidades e condições institucionais de promoção da pesquisa, de congressos, de encontros, publicação de revistas e material bibliográfico, de seminários e cursos de pós-graduação que venham a contemplar as emergentes demandas de formação e atuação no campo da pesquisa educacional, notadamente na escola.

5. Afirmamos ainda que a formação profissional de professores e professoras de Educação Física está a exigir uma clara definição pela atuação na escola, quer na sua estruturação institucional histórica, quer na compreensão dos sujeitos e interlocutores que hoje fazem as maiorias que frequentam a escola pública, oriundos das camadas populares mais despossuídas. Trata-se de questão urgente para que a educação, a escola e a Educação Física desenvolvam opções políticas e recursos metodológicos para dialogar, compreender, acolher e qualificar as classes sociais que a ocupam como uma das únicas oportunidades de elevação ética, desenvolvimento estético e formação política para a cidadania.

6. Cumpre afirmar que a Educação Física na escola não pode ser reduzida a uma atividade complementar, ou a um conjunto tecnicista e operacional de mediações práticas e produtivas, tal como se preconiza nas concepções conservadoras e reducionistas. A Educação Física que defendemos para a escola se apresenta como uma das mais promissoras áreas do conhecimento, problematizando a construção social da motricidade e pelo movimento culturalmente construído, dela decorrente. A Educação Física que almejamos para a escola deve-se afirmar como a possibilidade de aquisições de elementos subjetivos e sociais, epistemológicos e políticos, para a apropriação plena da corporeidade e leitura crítica de mundo como sujeitos históricos, dos meios e condições sociais e políticas onde cada educando está inserido.

7. Preocupa-nos, sobremaneira, um anunciado conjunto de dispositivos normativos e planejadores da educação básica brasileira pautado nos critérios de qualidade gerencial, de atualização formal, de redução dos conteúdos curriculares beirando ao empobrecimento, de locação de vagas na iniciativa privada e outras adjacências pontuais e fragmentárias. Urge uma veemente ação na direção da revolução educacional pautada em corajosas políticas de financiamento e de planejamento político-pedagógico de uma reforma democrática, autônoma e soberana, e voltada para a qualificação das amplas maiorias sociais.

8. Consideramos que a articulação entre as práticas emancipatórias de Educação Física na escola, a formação para a cidadania, a preparação para a apropriação e gestão política da motricidade humana, a elevação estética da concepção de corpo e corporeidade não pode ser reduzida a uma mera ação ventríloqua de repetição dos conteúdos e significados sociais postos pela indústria cultural e sociedade de massas, onde o corpo é sinal de arma de competição, meio de sucesso e mera mercadoria. A Educação Física que defendemos para a escola deve se pautar por teorias e práticas que visem a superação da concepção alienada de corpo, movimento e lazer que se estruturam sobre critérios de produtividade, força e poder.

9. Convocamos a sociedade brasileira, com destaque para a sociedade norte-paranaense, a uma atitude especial de cuidado para com a formação plena de suas crianças, de seus jovens e adolescentes. Num momento de profundas mudanças institucionais se requer a revitalização de ações solidárias, a formação de valores, a elevação estética de convivências humanitárias e cooperativas.  Destacamos a necessidade de promover criteriosos juízos para discernir a influência desmesurada dos atuais modelos de padronização comportamental efetivados pelas mídias atuais, com relevância para a televisão e seus imperativos.

10. Enfim, apresentamos nossas melhores intenções em atuar na escola e na pesquisa, na sociedade e na cultura, com os promissores propósitos de alcançar excelência acadêmica aliada à relevância social de nossas ações docentes e escolhas. Esperamos que o CONPEF, nascido do esforço de muitos professores e professoras, seja uma marca de nossa identidade, o horizonte de nossas possibilidades e o marco de nossas buscas em constituir referenciais epistemológicos, organizacionais e políticos da Educação Física para a escola, articulando pressupostos filosóficos emancipatórios sem desconhecer as tendências elitistas, autoritárias e conservadoras que pesam sobre nós, as quais procuramos com lucidez identificar para superar, e assim construir caminhos na direção de uma sociedade onde novos sujeitos históricos inscrevam novas práticas de pluralidade, tolerância, respeitos, convivência e solidariedade. Tal como a tradição filosófica que nos inspira sabemos que não conhecemos tudo e tampouco estamos ou estaremos plenamente formados. A ação docente na educação e, consequentemente, na Educação Física que almejamos para a escola consiste em ter coragem e audácia para atualizar, critica e criativamente, as práticas ressignificadas por novas e desafiadoras teorias. Porquanto aprendemos que quando mais conhecemos sobre o ser humano, em especial, muito mais há por conhecer.

Londrina, 29 de julho de 2004.